É quase impossível entender a subvalorização de Suso Cecchi D’Amico quando se fala em cinema italiano. A roteirista por trás de obras seminais como Ladrões de Bicicleta, Rocco e seus irmãos, Casanova 70, As Amigas, entre tantas outras, é infinitamente menos lembrada que os diretores desses próprios filmes. Um nome tão incontornável no processo do neorrealismo, que abarcou as diferentes vertentes do movimento em sua carreira, acaba numa posição pouco privilegiada nas prateleiras do processo histórico cinematográfico. Muito pelo Male Gaze que tanto privilegia o olhar e o nome dos homens na feitura dos filmes. Quanto por um entendimento exclusivamente autorista da história do cinema, ou seja, que entende a realização dos filmes como filho único e quase exclusivo dos diretores. Mas olhar a obra de Suso Cecchi D’Amico e sua trajetória é entender um pouco das transformações do roteiro ao longo da segunda metade do século XX e conseguir acessar novas formas de narrativas e procedimentos tão particulares na realização de um roteiro.
Entender a participação de Suso Cecchi D’Amico em filmes tão autorais do cinema europeu como as obras de Visconti, Monicelli e De Sica, é entender o papel do roteiristas em filmes arrojados, ousados e tão conectados ao seu próprio tempo. Suso Cecchi D’Amico fica num lugar curioso, afastada das pesquisas de professores e pesquisadores de narrativa, pois realizou filmes que fogem de um espectro da estrutura essencialmente clássica e por isso não são estudados. Mas também passa a ser analisada por críticos que partem justamente de uma noção superficial de autorismo que exclui o roteirista desse lugar de criação. E na profusão de ideias que foi o cinema europeu do pós Segunda Guerra, nem os próprios diretores acreditariam nisso. A questão é que nas transformações estéticas desse cinema europeu, Suso Cecchi D’Amicco parece um elo, quase perdido, entre esse cinema de autor e a análise do roteiro, talvez partilhando tal posição com Jean-Claude Carriere. Entender os procedimentos de Suso é um primeiro passo para acessar as composições de um roteiro moderno e notar que os processos implementados pela roteirista são as bases do que se entende como roteiro hoje. Resgatar o lugar de Cecchi D’Amico não é só um processo histórico, mas também de possíveis criações.
A Escaleta: Foi Suso Cecchi D’Amico a responsável pela difusão da ideia de Escaleta. Um processo hoje incontornável na realização de um roteiro, ideia apresentada por ela num seminário nos anos 1950. O termo vem do diminutivo da palavra italiana Scala, ou seja, escada, e Suso escrevia exatamente assim. Pensava seus roteiros como uma série de degraus pelos quais seus personagens deveriam passar. Portanto, determina-se primeiramente esses obstáculos e suas conexões lógicas para fundamentar a narrativa. Partia-se muito mais da relação entre esses desafios e suas consequências do que de uma estrutura pré-estabelecida.
Estrutura como ferramenta, não como regra: Justamente por essa concepção, Suso não era muito afeita a convenções de roteiro, entendia muito mais a estrutura narrativa como um norte, como uma ferramenta a potencializar os filmes que escrevia. Como a própria roteirista disse “não sigo normas como a que determina que algo simplesmente deva acontecer aos 12 minutos de filme. Deve-se escrever com o instinto. Mas a estrutura em três atos tem existido por séculos, por isso deve ser uma coisa boa.”, explicitando justamente uma relação entre o que a própria narrativa demanda e sua conexão com uma estrutura maior. A estrutura como um parâmetro para moldar a história, mas não como uma regra imutável.
Dessa forma, voltando à questão de que muitos pensadores e analistas de roteiros contornam filmes conhecidos como “autorais”, somente por não se incluírem num modelo de estrutura essencialmente clássico. Nota-se que a construção deles passa obviamente por uma ideia de roteiro, onde talvez a estrutura não esteja tão clara, mas de alguma forma está lá. Voltar a esses filmes e entender essas bases do roteiro é essencial justamente para provocar novos roteiristas a fazerem obras tão desafiadoras quanto as que Suso fazia. Filmes como O Leopardo, Ladrões de Bicicleta e As Amigas, estão abertos a leituras e análises de roteiro e talvez fazer este exercício seja mais rico e desafiador do que analisar um filme que siga fielmente as regras de Syd Field.
Ainda sobre estrutura: Nesse pensamento, Suso Cecchi D’Amico elabora seus roteiros nessas micro instâncias, nesses degraus, com esse norte baseado na estrutura de três atos. Dessa forma, são esses pequenos momentos que movem a narrativa. Uma regra fundamental para a roteirista é a concepção e o entendimento das funções de uma cena. Para ela, cada cena deve possuir três obrigações primordiais: conter o momento crucial de uma situação, o início de uma nova e o fim da primeira situação. Através da relação dessas cenas e dessas três funções é que Suso articula a movimentação de sua narrativa. Algo que para ela era sua regra fundamental.
A Realidade e a Pesquisa: Se o neorrealismo foi movimento que de certa forma implodiu uma barreira entre o real e o que se filma, usando não atores, filmando em locais públicos onde as histórias de fato aconteceram, e investindo num pensamento social, isso também está posto na função do roteirista. Suso Cecchi D’Amico conta como saía por Roma com outros roteiristas e diretores, coletando histórias de pessoas comuns. Esses relatos eram compartilhados entre eles, remontados e a partir daí tentava-se criar uma narrativa única através deles. Foi assim que surgiu Ladrões de Bicicleta. Num trabalho de pesquisa real, remontado pela própria ficção. Isso vale para mostrar que a revolução estética do movimento, também foi uma revolução narrativa. É um primeiro movimento coordenado para criação de roteiro a partir da pesquisa. Muito diferente do que os americanos e sua criação de roteiro industrial faziam na época. Hoje esse é um passo fundamental para qualquer filme, o estágio de pesquisa e sua incorporação na narrativa.
O Roteirista no set, o roteiro aberto a novas possibilidades: Outra prática comum hoje que foi implementada justamente pelo neorrealismo foi a presença do roteirista no set, não só como forma de acompanhar as filmagens, mas também de entender o roteiro como uma peça viva. O roteiro que já era pensado, formulado e reformulado, estava sempre aberto ao que o real poderia oferecer. O dia de filmagem era mais um elemento a ser incorporado pelo filme, num trabalho conjunto entre roteirista e diretor. Se houvesse um congestionamento, procissão, ou qualquer coisa do gênero, era hora de pensar como isso poderia estar no filme, repensar uma cena e entender como a possibilidade trazida pelo real poderia potencializar o ficcional. Hoje em dia, os irmãos Safdie e seu roteirista Ronald Bronstein trabalham assim na realização de longas como Jóias Brutas e Bom Comportamento.
O Roteiro e o filme como obra coletiva: Suso Cecchi D’Amico conta que na sua época os diretores não tinham a mesma importância que ganharam na metade do séculos XX. Para ela, o cinema sempre foi fruto de um trabalho cooperativo, que na verdade ninguém terminava como dono daquela obra. Em sua visão pragmática, o cinema era como um trabalho artesanal, feito de mão em mão. Isso não era diferente no roteiro, Suso Cecchi D’Amico preferia roteirizar em grupo, para ela, camadas de ideias surgiam a partir dessa lógica coletiva. Para a roteirista a comédia era o gênero que mais pedia o trabalho colaborativo, o timing e as próprias piadas ficavam mais maduras quando realizadas por mais de uma pessoa. Nesse esquema ela basicamente reproduz o que hoje se chama de sala de roteiristas, o processo pelo qual a maioria das séries é realizada. Prática que começou na televisão americana justamente nas sitcons. O processo realizado lá pelos roteiristas do neorrealismo é a base da construção da comédia contemporânea.
Aqui vale um adendo a importância histórica de Suso Cecchi D’Amico, porque se a roteirista começa com o neorrealismo, ganha notoriedade com as obras autorias de Visconti e Antonioni, ela também é parte fundamental de um processo de revitalização da comédia italiana. O gênero mais popular da Itália, que passou por uma fase de baixa durante a guerra e o pós-guerra, mas que pouco a pouco foi retomando sua notoriedade. A parceria entre D’Amico e Mario Monicelli é parte fundamental desse processo. O gênero era o favorito da roteirista e os anos 1950 e 1960 marcaram os sucessos das comédias italianas como em Os Eternos Desconhecidos, por exemplo.
O Homem Moderno como protagonista: Se Suso Cecchi D’Amico preferia as comédias, sua parceria mais famosa, com o cineasta Luchino Visconti, foi marcada pela fase mais dramática do diretor. Da cooperação surgiram filmes como Rocco e Seus Irmãos, Senso, Vagas Estrelas da Ursa, Violência e Paixão, O Leopardo, entre alguns outros. Estas obras não se conectam apenas pelo seu gênero, mas também por trazerem seus protagonistas como típicos homens modernos, no centro de uma mudança social. São homens lidando com um mundo que se despedaça e se reconstrói diante deles, são personagens que a todo momento parecem questionar seu próprio lugar no mundo. Se os manuais de roteiro preferem os heróis e suas decisões certas, Suso pode mostrar como lidar com personagens que parecem meros coadjuvantes em meio a uma profunda transformação. Algo bastante materializado no príncipe de O Leopardo, um homem acostumado com a nobreza que precisa entender um novo mundo aristocrático que surge à sua frente. É nesse choque entre situações que rivalizam o velho e o novo, que o espectador entende o sentimento daquele homem protagonizado por Burt Lancaster. De quebra esse sentimento não é só de um personagem, de um príncipe, mas sim o sentimento de um país e o processo de sua formação identitária.
Se tal feito parece grandioso demais, distante demais para alguém que analisa roteiros e ensina para pretensos roteiristas, o que se passa aqui é como uma obra realmente ligada ao sentimento de seu tempo pode gerar narrativas fortes. E nem sempre o tempo histórico vai pedir o personagem mais fácil para se escrever um roteiro. Aliás, esses filmes mencionados parecem exatamente o oposto. A família totalmente desconjuntada de Violência e Paixão tem os personagens mais controversos da filmografia de Visconti, uma mãe que renega os próprios filhos pela sua pose social. Ou até mesmo a relação incestuosa que marca Vagas Estrelas da Ursa, fazendo um panorama ousado sobre o medo e desejo no pensamento burguês. E talvez, a melhor forma de escrever personagens tão controversos quanto estes seja acessando a esses filmes, roubando esses personagens de obras como a de Suso Cecchi D’Amico.
Roubar mesmo porque era justamente como ela dizia fazer. D’Amico falava que furtava seus personagens dos grandes clássicos da literatura, falava que em Dostoiévski e em Tolstói tinha uma série de personagens prontos para serem roubados. Aliás, nos anos 1990, falava que o cinema não andava tão bem porque os roteiristas se distanciaram da literatura e dos clássicos. Se talvez a análise parta de uma visão um pouco mais nostálgica, a sugestão e o conselho parecem acertados. Parece acertado, aliás, como indicativo a voltar aos clássicos do cinema sem medo de analisá-los, sem medo de rever os roteiros desses filmes e entender que há um papel do roteirista também nas obras autorais. Sem medo de entender que ali há uma estrutura a ser aprendida, a ser decifrada, a ser roubada e a ser usada. Como a própria Suso fez com seu filme favorito, Soberba, de Orson Welles. Talvez a lembrança e o não apagamento de Suso Cecchi D’Amico seja essencial para roteiristas que desejam ser tão ousados quanto foi o neorrealismo.
Abaixo, nas referências para esse artigo consta uma das mais recentes entrevistas de Suso Cecchi D’Amico antes de sua morte em 2010. Confira.
Roteirização em Suso Cechcci D’Amico, artigo de Denise Camillo Duarte, disponível aqui
Suso Cechi D’Amico e a Origem do termo Escaleta, por João Nunes disponível aqui
The Storytellers: interview with Suso Cecchi D’Amico, entrevista por Mikael Colville-Andersen disponível aqui (em inglês)