Os herdeiros de Vigo

A partir da análise do filme “Zero de Conduta”, de Jean Vigo, levantamos elementos de seu cinema herdados pela dupla de diretores Josh e Benny Safdie.

Jean Vigo partiu muito jovem e deixou a nós, poucos, mas virtuosos filmes, que mesmo datados 90 anos, carregam aspectos atemporais. Além do seu longa-metragem “O Atalante” (1934), que foi um marco do cinema, deu origem ao realismo poético francês e inspirou também movimentos como a Nouvelle Vague, Vigo também realizou um média-metragem chamado “Zero de Conduta” (1933), que hoje já se encontra em domínio público com fácil acesso a quem se interessar.

Vivemos em um momento do cinema anestesiados pela inércia temática e formal, principalmente no cinema americano, mas que estende-se ao redor do globo, onde poucos conseguem escapar dessa letargia. Poucos são os cineastas contemporâneos que em sua cinematografia propõe-se à desobediência jovem à qual Vigo continha. É óbvio que o contexto é incomparável – o mais contraditório é que a liberdade ao criar de hoje acaba por não traduzir-se na liberdade da obra –, mas creio ser oportuno resgatar em “Zero de Conduta” um pouco dessa desobediência, tanto em seu propósito, conteúdo, personagens e também em sua forma, para expor um certo tipo de cinema onde a obra, ou o “mundo” presente nela, fala por si só.

Quando pensamos no ser desobediente de Vigo, não pensamos em algo que é desconstruído sem propósito. Assim como as crianças de seu filme, que trabalham de forma consciente em prol de uma revolução no espaço escolar, Vigo, com sua juventude, nos apresenta uma rebeldia cinematográfica desperta, que espanta pela sua modernidade estética à época. “Zero de Conduta” é um filme que carrega um certo carácter autobiográfico e se passa em um internato bastante repressivo e que implementa regras rígidas de conduta. Naquele espaço, quatro meninos decidem se rebelar e formam uma espécie de motim contra a direção do internato. Durante o filme presenciamos crianças em sua manifestação mais livre da juventude. Uma espécie de genuinidade anárquica, em que testemunhamos cenas que serviram de pretexto para sua censura na época, que expõem crianças a descobrir-se como adultos e seres sociais através de atitudes libertárias e também em busca de uma liberdade sexual naquele espaço opressor. 

Frame retirado do filme “Zero de Conduta”, 1933, de Jean Vigo

As crianças de Vigo são personagens regidos pelo espaço e isso inflama-os. Espaço esse que dita o ritmo do filme, dita o ritmo dos personagens. Existe um mundo dentro da obra que organiza os agentes. É evidente que o estilo de Vigo se manifesta nesse mundo, não há como desvincular seu estilo da obra, mas não é esse estilo quem dita o filme, é o filme quem dita seu estilo. Aspecto esse que foi praticamente evadido hoje, pois quando há uma tentativa autoral de escape do padrão no cinema atual, grande parte das vezes o que encontramos são cineastas “estilosos”, onde a qualquer custo tentam impor seu estilo ao filme e o filme não ganha vida, pois não há energia, ou que tentam uma desconstrução abrupta sem propósito real e acabam por esquecer o que é cinema. É essa energia (essência) cinematográfica de “Zero de Conduta”, que encontramos ao ver e estudar este filme de Vigo; é essa essência que pode influenciar tanto o realismo poético, quanto a Nouvelle Vague.

Em Zero de Conduta há uma montagem bastante caótica e inusitada, que favorece a iminência da ação em relação ao total entendimento da história. As sequências quase sempre são acompanhadas por algum tipo de ruído, seja ele sonoro por meio de diálogos explícitos situados de forma não sincronizada (tendo em vista que o filme se apropria do som no início do cinema sonoro e joga justamente com isso), mas como na imagem, através, por exemplo, de primeiríssimos planos nos rostos expressivos de muitos de seus personagens e uma câmera extremamente atenta à espontaneidade das ações desses jovens– uma câmera que capta seus personagens se movimentando no espaço. Vigo tenta captar a essência dos espaços para que os personagens se movimentem neles e não o contrário, é uma ideia parecida com os modelos de Bresson no que diz respeito à representação onde, ao invés de atores são utilizados não-atores, modelos que não representam, mas que agem no espaço à luz deles próprios – modelos do espaço, da vida.

O carácter anárquico, tanto em sua forma quanto conteúdo, de “Zero de Conduta”, é algo bastante difícil de se encontrar hoje, tendo em vista que parece existir sempre uma cartilha temática e formal a se seguir, principalmente em filmes com temáticas sociais e políticas. “Zero de Conduta” é um filme com vida e realizado sem medo e que estuda o mundo em que as personagens vivem, e acaba por trazer questões atemporais – como a identidade de gênero – de forma natural. Deve ser por isso que hoje, filmes conservadores, como por exemplo os do diretor russo Andrey Zvyagintsev (de “Loveless”), conseguem alcançar uma maior profundidade temática, pois não há medo.

“Zero de Conduta” é sobretudo um filme sem medo, onde todas as questões aparecem de maneira bastante natural, elas estão na ordem das coisas do filme, fazem parte do mundo daqueles jovens oprimidos que lutam pela libertação. Vigo, na última cena, enquadra o órgão genital de um jovem como manifestação espontânea do ato libertário do final do filme. A luta pela independência desses jovens está associada à luta pela identidade de gênero, reforçada pelo personagem de Tabard, um jovem que não há como diferir seu sexo pelas características corporais, e que após sofrer de um abuso de um professor, revolta-se contra a instituição e acaba por liderar a rebelião contra os funcionários do internato, comandado por um ator anão que é utilizado justamente para equiparar-se fisicamente às crianças.

Essas crianças de Vigo são jovens presos aos padrões impostos, mas o próprio cineasta parece que sentia-se preso também ao manifestar seu descontentamento em forma. O autor e os personagens confluem na obra, e tudo isso captado de uma forma quase documental. O crítico brasileiro Paulo Emílio – que estudou e falou praticamente tudo o que é possível das obras de Vigo – extraiu de seus filmes a preocupação do cineasta em filmar a vida e o espaço. Para ele, Vigo filmava nada mais, nada menos do que a vida em movimento no espaço. É essa vida, elemento chave que, ao observarmos a fundo o cinema contemporâneo e sabendo da influência que Vigo exerce sobre estes, creio que a dupla de irmãos diretores Josh e Benny Safdie são os atuais herdeiros dessa intensidade e energia característica de Vigo.

Frame retirado do filme “Daddy Longlegs” ou “Go Get Some Rosemary” de Josh e Benny Safdie

Ver os filmes dos irmãos Safdie é experimentar o cinema de uma meneira peculiar, é sentir as pessoas a vaguearem pelo universo do filme de forma espontânea, e apesar de seus filmes não carregarem uma bandeira política – se bem que Vigo não carrega de forma panfletária, mas sim anárquica – é possível encontrar semelhanças do cinema dos irmãos Safdie com o de Vigo, justamente no que toca à essa essência caótica de “Zero de Conduta”.

Nos filmes dos irmãos Safdie, a aleatoriedade está quase sempre presente, muitas vezes eles procuram o erro para encontrar algo de potente dentro dele e, quando encontram, já não é mais erro. Em seus filmes, o ambiente fala por si só e de maneira distinta em cada obra, e esse mesmo ambiente é quem dita o estilo o qual eles devem empregar ao filme. A Nova York de “Go get Some Rosemary”, não é a mesma de “Amor, Drogas e Nova York”, que por sua vez também não é a mesma de “Jóias Brutas”. Cada filme tem seu espaço, e cada espaço tem sua vida, suas pessoas, e essas pessoas transformam-se em personagens quando registrados, sejam eles atores ou não-atores. Seus personagens têm um caminho próprio além do roteiro, eles parecem se movimentar sozinhos, assim como as crianças de Vigo.

A câmera dos irmãos Safdie também lembra a de Vigo, a atenção aos gestos e percepção de todo entorno no ato de filmar é notável, a organização está justamente na sua anarquia, do caos nasce ordem. Mas o caos já estava presente – existe sempre algo impetuoso que invade o filme –, o cinema deles é apenas uma extensão espontânea do que a vida em movimento emana em determinados locais que eles escolhem para filmar.

Nos filmes dos irmãos Safdie não há frescura, não há idealização, e também não há vitimismo. O espaço está filmado, então os agentes vão ser fiéis a ele. Uma vez descobrindo a essência do espaço, eles descobrem o filme. Assistir aos seus filmes é relembrar Vigo. Vida longa aos Safdie, os herdeiros de Vigo.

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