O cinema, principalmente mainstream, nunca pretendeu atribuir o verdadeiro valor histórico ao holocausto, muito menos preocupou-se com a importância da preservação da sua memória.
Nuit et brouillard, 1956, de Alain Resnais, é um dos pontos fora da curva que faz jus ao seu significado, através de um “documentário” de trinta minutos que resume bem a barbaridade deste desastre. De lá para cá podemos destacar também Shoah, 1985, de Claude Lanzmann, que de uma maneira distinta, sem apelar à representação das imagens, mas sim rememorando relatos de sobreviventes, também reviveu a memória das cicatrizes marcadas pelo genocídio. À pas aveugles, 2021, de Christophe Cognet, surge como um meio termo destes. É um filme que se utiliza de um dispositivo visual poderoso, ao mesmo tempo que usa seu discurso em prol da preservação do conhecimento da história e memória.
Quanto ao dispositivo e centro de seu estudo, de início pode existir a sensação de que seja algo demasiado simples para carregar um filme com tamanha pretensão. São elas fotografias, um conjunto delas, tiradas de forma clandestina, por aqueles que, tiveram a coragem de fotografar dentro de campos de concentração, enquanto estavam presos. Através dessas fotografias, tentamos reviver a história por meio de uma perspectiva íntima, pois somos convidados a reconstruir essas imagens ao longo da obra ao revisitar os locais delas no presente.
Diferente do filme de Resnais, onde em sua grande parte, as cenas expostas são imagens documentadas pelos próprios nazis e depois resignficadas. Em À pas aveugles, o ponto de vista já nasce à partir de dentro, daqueles que sofreram com o holocausto e que colocaram suas vidas em risco ao tentar fotografar o modus operandi dos campos. Ao abrir o primeiro rolo de negativo destas fotografias, Christophe Cognet adota uma câmera subjetiva que detalha em contra-luz um pouco dos elementos presentes nos fotogramas. Mesmo sem a nitidez da foto revelada, vemos que há uma força elementar enorme nessas imagens vistas a partir de um negativo.
É esta mesma elementaridade já comentada que propicia ao filme acessar o passado do holocausto de forma sui generis com a sobreposição de um negativo ampliado posto no exato local das fotos originais, somado ao discurso dos especialistas das mesmas. Com a conjunção destes elementos, Cognet concebe uma espécie de filme-museu, onde a importância do discurso dos especialistas é tão grande quanto a representação visual das fotografias. São especialistas que esclarecem as evidências históricas com exatidão e prudência, enquanto sua estética propicia uma experiência hipnotizante.
Resnais tentou através do texto, em seu filme, buscar uma certa capacidade de superação frente à perversidade encontrada visualmente, mas aqui encontramos esta tentativa através das próprias fotos. Existe uma heterogeneidade presente nessas fotografias, onde algumas, claro, buscam denunciar os horrores cometidos naqueles locais, e outras buscam recuperar certa humanidade através de, por exemplo, retratos que demonstram tentativas de resistência através da celebração da própria vida. Ou seja, tanto a coragem de dar vida às pessoas através das fotografias, quanto o de expor e denunciar para evitar que outras mais percam as suas, exprimem uma tentativa de resistência por parte destes fotógrafos.
Cognet, que adota uma subjetiva como meio do público acessar ao filme no início, como se pedisse licença à nós para revisitar este tema, aos poucos quebra os limites do quadro e adentra-se de vez como personagem no filme, e é um personagem que contribui ativamente. Seu estudo e conhecimento é tamanho, que há uma cena em que ele propõe uma nova perspectiva e ângulo sobre uma foto que já havia uma atribuição espacial determinada pelos especialistas e historiadores. Alguns filmes sobre o holocausto são desfavores, À pas aveugles é sem dúvidas, um contributo.