Lá estava Dona Dor, difícil dizer onde, mas lá estava ela. Sonhando? Talvez. De início essa era sua principal suspeita, mas aos poucos percebia que não se tratava de um sonho. Há alguns dias Dona Dor tinha um encontro marcado através da internet, com sua neta – que diziam ter sua cara quando jovem –, uma escritora iniciante que, do outro lado do globo tinha ambição de fazer com que a história de vida de sua avó se tornasse um livro. Dona Dor adoeceu no dia do encontro e foi para o hospital, tudo muito rápido. Uma epidemia assolava o planeta e Dona Dor foi acometida. Internada há dois dias, seu estado era muito grave, a morte era inevitável. Momentos antes de morrer, Dona Dor teve a consciência de que esse era o seu fim e, de um instante para o outro, Dona Dor morreu.
Sua primeira reação foi chorar, e chorou muito, como não chorava há anos. Mas em seguida uma euforia tomou conta de seu corpo. Dona Dor estava jubilosa, muito feliz para dizer a verdade. Só que após o momento de excitação veio o estágio da realidade – do tentar dar sentido àquilo – como se houvesse algo de real naquele cenário. O fato é que não havia. E também não havia luz. Uma imensidão negra ao seu redor a impedia de enxergar e Dona Dor perguntava-se «Eu fui para o céu? Mas cadê Deus? Onde será meu julgamento? Eu estou no céu! Ele logo aparecerá. Mas o que falarei para Ele? Não posso mentir, tenho de ser sincera, isso é o mais importante, sinceridade. Não tenho nada a temer, que Ele apareça e eu estarei preparada.»
O tempo passou e nada de Deus aparecer. A cada minuto passado, Dona Dor ficava cada vez mais ansiosa, a impaciência era tamanha que ela resolveu que iria tentar andar. «Deixa de ser impaciente sua velha, Ele logo aparecerá! Mas e se não aparecer? Será que Ele está a minha espera? Mas que caminho eu devo tomar? Está tudo escuro aqui. E quem garante que se eu der um passo, não caio? Será que arrisco?» pensava Dona Dor.
E como sempre fez ao longo da vida, ela arriscou e deu um passo à frente. Após o primeiro passo, o segundo, após o segundo, o terceiro, após o terceiro, uma série deles. Dona Dor corria como uma garota de 20 anos atrasada para pegar o comboio. Ela não parava de correr em direção à uma pequena luz que brilhava à sua frente. «É Ele! É Ele! Tenho que correr ao seu encontro, ao encontro da luz, Ele está à minha espera.» Dona Dor literalmente sentia-se no céu correndo daquela maneira. Era algo de dar inveja a qualquer corredor profissional. E quanto mais acelerava, a luz ficava cada vez maior. «Você consegue velhinha! Está quase!»
Dona Dor chegou. Mas Deus não. Para sua surpresa, a luz vinha de um abajur situado sobre uma pequena mesa de madeira; sobre a mesa, estava um livro e sobre o livro, uma caneta. Dona Dor observava aqueles objetos e novamente tentava encontrar algum significado para aquilo. Sua mente vagueou durante alguns minutos à procura da conclusão mais plausível, até encontrá-la e, quando encontrou, depositou toda sua fé nela. «Com tanta gente morrendo ao mesmo tempo, não é possível Deus estar presente em todos os julgamentos, para isso Ele disponibilizou um livro em branco em que nós, pecadores, escrevemos um bocado da nossa história, para depois Ele ler com calma e tomar sua decisão.»
Dona Dor abriu o livro, que estava realmente em branco, confirmando a sua previsão. Em seguida acomodou-se na cadeira e pegou a caneta. Estava preparada para escrever, mas lembrou-se de que não sabia como, e no caso não seria como começar e sim como escrever. Aos prantos, ela lamentava que em vida nunca se dedicara o suficiente para apender a escrita. Tomada pela vergonha, Dona Dor deitou sua cabeça sobre a mesa de madeira sem saber o que faria nesta situação. «Que vergonha, sua velha imprestável. Noventa anos e não sabe sequer escrever uma palavra.» Lastimava Dona Dor. De repente lhe veio a ideia de tentar escrever o próprio nome. Não escrevia há anos, mas lembrava de que um dia já fora capaz; levantou-se da mesa, pegou a caneta novamente, abriu o livro e lentamente recordou e escreveu seu nome inteiro no livro.
Diorcisa
A melancolia foi embora e Dona Dor saltitava de felicidade por ter conseguido escrever o próprio nome, que já não escrevia há anos, décadas se calhar. Animada com o progresso na arte de escrever, Dona Dor sentou-se novamente na cadeira e tentou lembrar de outra palavra que já havia escrito na vida, mas não veio nenhuma à mente. Ainda orgulhosa, olhou novamente para o seu nome escrito e decidiu escrever sua alcunha.
Dor
Palavra que talvez definisse tão bem o que fora a sua vida. Contudo, Dona Dor não estava contente ao resumir a sua história através dessa palavra e, com um impulso momentâneo, agarrou na caneta com uma força tremenda e tratou de passar a frase que veio à sua cabeça para o papel.
Dor é o que eu sinto neste momento por não conseguir expressar minhas palavras neste livro
A partir dessa frase, Dona Dor não parou mais. Escrevia como uma escritora faminta com a necessidade de expor tudo que lhe vinha à cabeça para contar a vossa história. Era sincera ao escrever e essa virtude destacava-se acima de tudo. Escusado será apresentar neste breve conto o texto integral redigido por Dona Dor. Lá estavam histórias dos seus 15 filhos e 47 netos, e nem mesmo Garcia Marques conseguiria apresentar uma árvore genológica que pelo menos guiasse o leitor nesta leitura.
Ao acabar o texto, Dona Dor fechou o livro e a luz que emanava do abajur expandiu-se por todo o espaço. Dona Dor não enxergava mais nada, só um clarão. Aos poucos o clarão foi extinguindo-se e Dona Dor foi recuperando sua visão. Ao seu redor, formavam-se pequenos focos de luz espalhados pelo espaço. «São estrelas?» Questionou-se ela. Dona Dor começou a caminhar novamente com o intuito de aproximar-se do que ela pensara que fossem estrelas. Ao chegar perto de um punhado delas, a imagem ficava mais clara: eram pessoas. Uma multidão de pessoas. Cada uma com um livro na mão. Cada uma com uma história para contar. Aos poucos todos foram trocando os livros entre si, instaurando-se uma espécie de clube de leitura jamais visto. E Dona Dor, quando estava prestes a trocar de livro com um jovem pajé – mesmo não falando a mesma língua, ainda sim conseguiram se comunicar normalmente –, lembrou-se de sua neta. Dona Dor pediu um momento ao jovem pajé, pegou sua caneta e escreveu na dedicatória do livro:
Para a minha neta.