Não poderia passar pelo festival sem sequer escrever sobre curta-metragens. Em uma sessão competitiva que apresenta novos filmes de jovens realizadores, foi possível identificar uma marca em comum entre quase todos. Algo do tipo: se não tivesse a passar nesta secção saberíamos mesmo assim que são primeiras obras ou filmes de contexto escolar… Mas há pelo menos um deles que não segue esta regra e, mostra-se um filme maduro, estruturalmente bem realizado e bastante corajoso.
Fruto do Vosso Ventre, de Fábio Silva, é um documentário autobiográfico com tons de auto-ficção, um filme de dispositivo que faz-nos lembrar a nova escola mineira de cineastas da cidade de Contagem. Fábio nos propõe uma viagem através do passado de sua família em busca de respostas para a complicada pergunta, afinal, quem é meu pai e por quê nos afastamos?
O filme tem início com uma uma quebra da quarta parede por parte do cineasta, onde o mesmo já expõe seus objetivos como personagem. A casa onde cresceu em sua infância e que depois distanciou-se é o espaço escolhido no presente para ilustrar sua regressão.
A câmera caminha pelos cômodos da casa em busca de objetos que descodifiquem este passado. O primeiro deles é uma estante com objetos vindos da África. Filhos de pais cabo-verdianos, o mesmo afirma através do uso de um delicado voice-over, que aquela estante foi seu único referencial africano durante um bom tempo. Neste momento temos um insight à sua complicada relação com o pai, que depois percebemos que vai desde privações físicas na infância (como não poder brincar fora de casa), quanto à privação da memória, dos seus antepassados e raízes, como bem representa esta cena com os objetos.
O realizador continua pela viagem dentro de sua própria casa (física e mental) e desta vez encontra uma gaveta cheia de fitas nunca reveladas de imagens caseiras captadas pelo próprio pai ao longo da vida. Presenciamos então uma antinomia através deste pai: um homem que privou seu filho à sua memória, mas que deixou-a fechada em uma gaveta para que um dia o filho pudesse acessá-la e reconstruí-la.
A partir de então o realizador aciona o dispositivo das imagens de arquivo, sobrepostos nos centro do quadro frente ao presente e remonta o seu ponto de vista a partir destas imagens. Entre perdas e problemas de relações, passamos a conhecer seus pais através da oposição entre o seu ponto de vista no presente, a sua memória de infância e as imagens que acessam um mundo anterior à sua existência.
De certa forma, a abertura da gaveta serve como metáfora para o próprio filme. Ao poucos, encontramos algo mais à fundo nela, que não era possível enxergar sem que alguém a revirasse. E Fábio faz justamente isto, revira a gaveta, e ao procurar compreender o pai, o ato ressoa nas consequências que a ausência do mesmo também teve na mãe. E a vontade do público, que anteriormente era a de conhecer o pai e presenciar um diálogo entre ambos, passa a ser a de ouvir a mãe.
E aqui que sua estrutura ganha força, pois qualquer outro autor provavelmente tentaria enfrentar os limites do conflito do filme, mas Fábio abdica deste, para terminá-lo com um diálogo potente e sensível, entre Fábio e sua mãe. Afinal, esta criança que acompanhamos no ponto de vista do pai através de suas imagens recuperadas, onde a progenitora está sempre ao fundo e escondida no quadro, é fruto do vosso (mãe) ventre.