Faz algum tempo que tive a oportunidade de ler Cinema ao Vivo e as Suas Técnicas, de Francis Ford Coppola; e ao terminar o livro conclui que seria um tanto que absurdo pensar que aquele objeto que Coppola estava a tentar criar, teria algum espaço naquele momento – por volta de 2019. A ousadia de seu projeto parecia exagerada e ao mesmo tempo muito distante da tendência do mercado e para o que ele apontava. Tendo em vista algumas de suas excursões frustradas, bem como a inovação proposta com seu filme One From the Heart nos anos oitenta, não estava a colocar muita fé na sua ideia de cinema ao vivo. Do livro, de forma efetiva, busquei apenas tirar o máximo dos apontamentos paralelos que Coppola fez ao falar do processo criativo dos filmes que realizou ao longo da vida, principalmente em relação aos seus métodos de direção de atores, que realmente valem a pena serem lidos.
Contudo, recentemente deparei-me com este livro novamente e por incrível que pareça, percebi agora que o mesmo pode ser um bom marco para discutirmos como sofisticar a linguagem do teatro digital, que passa a se tornar uma realidade inevitável, mesmo em um cenário “pós-pandemia”.
No texto Os fantasmas e o espectador, questionei o comportamento das plataformas de streaming de cinema, mas é bom esclarecer que o mais problemático não é a exibição de um filme em uma plataforma digital, mas sim como a indústria cinematográfica está lidando com essa nova tendência. Talvez o teatro possa nos mostrar algo diferente dessa lógica, onde através do hibridismo entre o cinema e ele, nasça um objeto que possa ser criado a partir do autor, tendo em vista que dificilmente o teatro funciona ao ser transmitido como apenas uma extensão simplista do palco à tela. Desta maneira, pensar o teatro à partir de uma perspetiva cinematográfica torna-se necessário, quem sabe vindo a ser um espaço, inclusive, onde os autores de cinema possam exercitar sua linguagem autoral através do mesmo.
Em seu livro, Coppola sugere uma nova espécime que nem é teatro e nem cinema, mas sim: cinema ao vivo. Um híbrido entre teatro, cinema e televisão, e que o diretor tentou experimentar em um workshop na UCLA com o auxílio de estudantes e professores. O livro traz todo seu relato experimental, traçando paralelos com sua carreira e sua experiência cinematográfica e acompanha também seu diário dos dias de produção na universidade. Para clarificar no que consiste o cinema ao vivo: basicamente encena-se um roteiro em direto – no caso desse workshop foi Distant Vision, uma história autobiográfica que retrata três gerações de uma família ítalo-americana cuja história perpassa o desenvolvimento da televisão –, que é transmitido de uma maneira mais sofisticada e com um olhar audiovisual muito mais apurado.
É fato que esse tipo de produção exige muitos recursos e bastante investimento. O conceito de cinema ao vivo de Coppola é baseado no uso de dezenas de câmeras, sistemas de replay instantâneo e outros equipamentos que permitem o realizador trabalhar o material em direto, para que as performances sejam representadas ao vivo e vistas em tempo real. Contudo, creio que podemos usar do livro de Coppola para assimilar a comunicação entre profissionais de teatro e cinema e o quanto uma área pode contribuir com a outra na busca de um objeto que sofistique o teatro digital, pois dificilmente o realizador da peça vai ser o mesmo da transmissão em vídeo. E assim sendo, o diálogo terá que existir e as escolhas perpassarão os dois autores também. No fundo, o teatro digital nada mais é do que uma tentativa de realizar uma versão minimalista do cinema ao vivo, de Coppola, porque apesar de levar o cinema em seu nome, a performance é teatral.
Inevitavelmente temos que pensar em algumas questões pertinentes quando se fala em teatro digital: o ritual de assistir a um espetáculo ao vivo é transferível para um computador ou uma pequena tela? Ou pode-se quebrar esta lógica do ao vivo para favorecer a qualidade audiovisual da peça? Algumas companhias e espetáculos já estão a fazer uso do conceito de pós-produção cinematográfica para trabalhar uma montagem pós filmagem da peça. Ação que inevitavelmente contribui para a qualidade audiovisual, mas quando retiramos o carácter real do teatro, do tempo, o que acontece? Continua a ser teatro? Coppola diria que não e que “o teatro é apenas relevante na medida da experiência que confere ao público.” Para ele, no fundo, se o material for para pós-produção, o distanciamento para com o público aumenta e a tendência é que o cinema talvez atropele o teatro nesse trajeto.
Porém, ainda acho cedo para cravar algo, mas creio ser necessário tentar manter a experiência do momento – o teatro ganha vida no presente. Desta forma, o cinema ao vivo pode ser um excelente estudo para quem pensa no teatro digital por este viés. No cinema ao vivo, todos os profissionais trabalham em conjunto para um objeto artístico de momento único, onde a performance dá-se ao mesmo tempo que a equipe técnica trabalha para a transmissão audiovisual. Mas não podemos negar que, a partir do momento em que há muitos instrumentos sendo utilizados ao mesmo tempo, a produção está evidentemente mais suscetível aos erros, a questão é: esses eventuais erros justificam a experiência como um todo? No cinema ao vivo, sim.
“o envolvimento está na mente de quem está a assistir, na consciência de que o desempenho, com todos os seus defeitos, é em direto.”
Francis Ford Coppola
Todo esse estudo em relação ao cinema ao vivo recairá sempre na questão financeira. É fato que esse modelo precisa de um investimento muito grande, como já dito anteriormente, mas talvez observando-o e extraindo-o o mais importante e necessário para concretizar esse hibridismo de artes performativas, possa sair algo tão rico quanto o objeto de Coppola.
Ao identificarmos o fundamental e perpassá-lo para uma lógica do teatro digital, deparamo-nos primordialmente com a necessidade de um diretor de cena (cinema) para a produção – é indispensável trabalhar com os atores a questão da câmera. Segundo, temos de pensar a unidade. No teatro, a unidade básica é a cena, já no cinema é o plano. Encontrar o meio termo disso é o maior desafio. O cenário e o ator eventualmente serão manipulados para o enquadramento e não o contrário e, a montagem – mesmo não havendo pós-produção – existe ao alternar um plano pelo outro. É imprescindível transpor a linguagem cinematográfica para o teatro digital com o uso de montadores de cinema. Mas onde se insere a televisão nessa história? Quando Coppola refere-se à tevê, a mesma é pensada através de uma perspectiva de estrutura, de como trabalhar o esconder das câmeras e equipamentos, de como pensar a iluminação de uma forma prática, entre outros fatores característicos de uma produção ao vivo. Com o cenário da pandemia, muitos profissionais do audiovisual ficarão sem espaço, e seria bom recorrer ao teatro e vice e versa e tentar um maior cruzamento entre teatro, cinema e inclusive tevê.
Mas o público do teatro está preparado para isso? Provavelmente não. Mas talvez, se acaso nasça esse novo objeto, o mesmo possa vir a ser um meio de aproximar um público que está muito longe do teatro, e que não usará desse para substituí-lo, mas sim para descobri-lo. Não há o certo. É o momento de tentar tendo em vista a perspectiva futura. É muito simbólico que o trabalho e pesquisa de Coppola tenha sido feito em uma universidade – um espaço propício para se experimentar. Quem sabe no futuro nasçam realizadores do cinema ao vivo, ou teatro digital, onde os mesmos possam trabalhar juntos na construção da peça já pensando na linguagem cinematográfica da mesma. E sempre que pensarmos que Coppola está ultrapassado, talvez estejamos errados e ele esteja na vanguarda, assim como em One From the Heart, um filme que, apesar de mal-recebido, mostrou-se uma obra que estava à frente de sua época.
O livro de Coppola traduzido para o português não foi publicado no Brasil e sim em Portugal. Mas pode ser encontrado na sua versão original Live Cinema and Its Techniques.
E caso queiram ver um pouco do exercício realizado por ele na UCLA, está disponível aqui.