“Filme de Domingo”, de Lincoln Péricles, e “Entre Nós Talvez Estejam Multidões”, de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, foram filmes bastante significativos no estranho circuito de cinema de 2020. E talvez pela série de exibições onlines, a proximidade das duas obras ficaram ainda mais explícitas. Não pelos dois serem “filmes de quebrada”, sobre a quebrada, realizados na quebrada. Mas por articularem de maneira muito consciente, e principalmente muito cinematográfica, um relato significativo sobre personagens no seu lugar geográfico, e a partir disso reafirmar o caráter individual destas narrativas.
É necessário ressaltar que ambos os filmes fogem completamente de um retrato determinista, um olhar pré-produzido que busca nas ferramentas audiovisuais apenas uma aprovação de uma ideia hegemônica para com um lugar e as pessoas que habitam ali. E isso só ocorre pela proximidade com que os criadores estabelecem com aquele cenário e com aqueles personagens, indo muito além de narrativas pré-construídas. É curioso como as duas obras, dentro de suas diferenças, não são filmes cômodos, não são narrativas de conforto para os seus protagonistas (ainda que exista um carinho muito evidente entre câmera e personagens). Mas de alguma forma sugerem saídas e embates para o Brasil do 2020.
Filme de Domingo e Entre Nós… não optam, por exemplo, pela narrativa do filme de refúgio como é Quebramar, curta-metragem de Cris Lyra. Ali a possibilidade de relacionamento entre as personagens, um grupo de jovens lésbicas, acontece em uma espécie de retiro, onde aquelas mulheres podem ser e expressar quem elas realmente são. Se ali há uma narrativa de companheirismo, de sororidade e de conciliação entre os iguais, o mundo real, duro e brutal parece um lugar impossível para as jovens, e talvez essa realmente seja a grande questão do curta. Por outro lado, um documentário muito mais tradicional como Entre Nós… não encontra espaço para esse refúgio. A comunidade, fruto de uma ocupação urbana, é lembrada a todo momento de um mundo que a rejeita, e essa violência bate à porta todo dia.
Esse sentimento pouco cômodo só é possível porque a construção deste documentário não esconde as contradições daquele lugar. Pelo contrário, busca evidenciar os ruídos na elaboração de uma comunidade social periférica. O olhar aqui não é determinista nem para mal, mas também rejeita possíveis romantizações desse processo social. É um filme sobre um lugar que nasce da luta, mas que abriga semelhantes completamente diferentes. A construção deste espaço comum surge a partir da conciliação e apaziguamento de diferenças gritantes, tudo para manter aquela comunidade como um lugar seguro. As multidões contidas no título não são só entre espectador (principalmente o público de um festival online de cinema) e os habitantes daquela comunidade, mas também entre aqueles próprios personagens. É através dessas contradições que se vibra a individualidade.
Filme de Domingo, por sua vez, parte de um relato mais ficcional. Sua individualidade já é dada nas regras da ficção, o estabelecimento de três personagens que serão acompanhados durante aqueles 26 minutos. Como a própria sinopse do filme indica, é a história de um domingo de sol na quebrada, um tio babão, uma mãe zika e uma criança artista. E ainda que o filme se insira nas narrativas autoficcionais, o que interessa aqui é uma jornada individual em relação a um mundo cada vez mais complicado. Isso tudo, sem traçar grandes jornadas arquetípicas, apenas nos simples questionamentos de uma mãe negra periférica no agora. Um filme que acaba sendo gigante sem necessitar das artimanhas de roteiro das narrativas hegemônicas. Dessa forma, é um filme que tenta de alguma maneira filmar os sonhos dessas duas mulheres, a mãe zika e a filha artista, enquanto a mais velha é assombrada por um sentimento de impossibilidade. É quando esse tio, um homem que de alguma forma realizou seus sonhos, um médico, volta para sua quebrada e reencontra essas duas mulheres. Como um verdadeiro mentor, esse homem convida suas familiares a caminhar pela comunidade até a barraca do pastel. É nesse reconhecimento do lugar, é nessa jornada comum, é na troca entre o mentor real e uma protagonista cotidiana que essas questões tão profundas são suscitadas e resolvidas. O passeio por esse lugar tem um lugar central na composição daquelas individualidades.
E os dois filmes não realizam tais feitos apenas no campo teórico, mas justamente em operações cinematográficas propriamente ditas. Aliás, uma operação bastante simples, a composição do quadro majoritariamente no Plano Conjunto. O conjunto é o plano que melhor reflete uma relação entre indivíduo e lugar, algo bastante óbvio, mas aqui parece haver uma consciência bastante interessante disso. Entre Nós… passa boa parte do filme em uma série de entrevistas, as famosas talking heads e é justamente aí que o documentário melhor emprega o Plano Conjunto. Não é só a cabeça daquelas personagens que falam, mas tudo que a constitui: sua casa, seus móveis, contam uma história extremamente rica. Busca-se ali algo além do relato falado, mas que está impregnado na vida daquelas pessoas. Ficam os cartazes marxistas dos líderes da ocupação. O violão em quadro de um garoto que sonha em ser artista. A mesa de manicure de uma trabalhadora. O quadro religioso de uma outra personagem. Além desse ambiente contar uma história, essa simples utilização do plano conjunto fala que ali, naquele lugar, existem lares, existem lugares que imprimem a vida de uma pessoa.
Fazer esse tipo de afirmação numa ocupação é algo digno de nota. Porque é justamente um lugar visto pela sociedade como algo irregular, transitório e que não é propriedade dos que ali estão, afinal ele é ocupado. Um simples enquadramento de câmera diz o oposto: esse lugar é dessas pessoas. A vida delas é esse lugar. E mais uma vez, faz isso reafirmando a individualidade daqueles moradores, compondo um mosaico de vivências e particularidades que constrói uma comunidade. É uma multidão com rosto e história que compõem aquela ocupação. Algo materializado pela intervenção do show no meio da rua, onde cada morador sobe num palco no meio da comunidade para se expressar, seja cantando, dançando ou qualquer outra coisa. De novo, filmado em plano conjunto, quebrada e seus moradores, cada um com sua voz.
Se o documentário chega a uma conclusão muito mais social, o filme de Lincoln Péricles está falando de sonhos e sentimentos que podem ser perdidos, questões muito mais abstratas. Filme de Domingo encontra isso justamente no ato de filmar o afeto daquela família. O mentor desta história traz a resposta para aquelas garotas através do suporte emocional. O plano conjunto de Lincoln Péricles é mais próximo que o de Pedro Maia e Aiano Bemfica, até porque é um plano mais sentimental. E uma das imagens mais bonitas do cinema brasileiro em 2020 é o abraço entre esses três personagens. Um abraço que ocupa todo o plano conjunto, um afeto que transborda o próprio quadro. Há um restabelecimento da fé no cotidiano, há um projeto de continuidade para aquela mãe e sua filha.
E talvez, esse afeto familiar não seja a única resposta que o filme e a sua protagonista buscam. Esse tio não traz consigo apenas esse afeto, ou apenas a resposta vitoriosa para uma vivência material. O caso do homem que sai do Capão Redondo para ser médico no centro de São Paulo. Aquele homem carrega consigo um saber ancestral, traz a religiosidade dos orixás. Ele traz respostas que não estão contidas no campo do terreno, do material. O conjunto, a comunidade retratada em Filme de Domingo vai além das ruas daquela quebrada, tem conexões em outros tempos, tem raízes em outros mundos e em outro continente. A resposta da mãe zika está além e Lincoln Péricles consegue captar isso de alguma forma, talvez seja por isso que Filme de Domingo pareça tão gigante.
É também num plano conjunto que isso acontece. Quando a protagonista se banha num pequeno lago, cena que se inicia com as palavras ancestrais daquele mentor, o diretor filma aquela mulher, o céu, a água, e parece captar muito mais do que a câmera pode registrar. Uma imagem que vai além do que os olhos podem ver. Um plano conjunto da protagonista, da água, do céu, mas também de ancestrais, de orixás, de forças que nem todos podem ver, mas que Lincoln Péricles e aquela mãe zika com certeza enxergam. De alguma forma, Lincoln Péricles faz um filme que consegue ir além dos sentimentos e sonhos abstratos, parece captar o imaterial.
O conjunto, do plano e da vida, está nesses filmes para abordar a própria individualidade para além (mas também) de suas quebradas. Narrativas que reforçam as multidões existentes em cada um. Seja na contradição filmada na câmera tremida de uma discussão de bar na ocupação, onde discordam sobre racismo, ou sobre o Bolsonaro. Seja na constituição de um indivíduo que vai além da sua finitude terrena. Afinal, são filmes do todo.