Uma vez impossibilitados de tomar uma cerveja com os amigos. Porque não uma cerveja em companhia de um bom livro?
“eu aqui me comprometo a te embalar na rede de palavras, nosso mar, nossa canoa, nós dois – nossa amizade nesta mesa de contar os misosos da vida, travessia nas lágrimas das nossas cervejas, aqui, nos olhos e na boca da noite.”
Esse é o compromisso selado entre o narrador de Quantas Madrugadas Tem a Noite e o leitor. Através da poesia mundana de Ondjaki, somos transportados para uma madrugada ao lado de um desconhecido e amigo da noite, em um bar situado em Luanda. Com o desafio de contar-nos a estória de um morto, ou melhor, a estória de um morto moldada por muitas outras estórias – uma árvore de vidas – o narrador de Quantas Madrugadas Tem a Noite leva-nos a uma viagem pelas palavras, pessoas e ruas de Angola. Caberá a ele o desafio de nos provar que uma noite é feita de muitas madrugadas e que até um romance cabe dentro dela.
Ondjaki não conta histórias, mas sim estórias. Assim como não escreve em português, mas sim em desportuguês. A liberdade estética unida às suas narrativas periféricas compõe uma obra singular que reflete o sujeito pós-colonial de origem portuguesa. O mesmo que usa da língua, da arte e da cultura para desconstruir e ressignificar um modelo, em prol da reflexão sobre o seu espaço inserido na modernidade – que vive assombrado pelo passado.
Ondjaki diz que não pensa que deve existir um dicionário de língua desportuguesa, mas essa á a língua que ele opera, que ele vive. É a oralidade transportada à literatura, sendo ela, uma das manifestações mais autênticas de um povo. Pensar como a arte pode transpassar essas manifestações é uma questão muito importante e urgente, não só na literatura, mas também no cinema.
Como exemplo recente de uma obra que retrata essa questão, podemos citar o livro brasileiro O Sol Na Cabeça, de Geovani Martins que, aqui em Portugal, vêm acompanhado de um pequeno glossário (assim como Quantas Madrugadas Tem a Noite). Contudo, diferente do livro de Ondjaki, o glossário de O Sol Na Cabeça é uma página solta do livro. À vista disso, quando emprestei o livro para amigos portugueses, fiz questão de retirar a página do glossário de propósito para sentir qual era o impacto das pessoas ao lê-lo sem perceber algumas expressões.
E talvez isso venha a ser uma tendência, uma vez que a mais recente obra de Ondjaki (O Livro do Deslembramento) não acompanha um glossário. A ideia é justamente experienciarmos diferentes manifestações linguísticas provindas do português e que, no fundo, traduzir-se-ão no desportuguês. Não podemos negar que esse movimento já foi realizado ao longo da história através de diferentes autores da língua portuguesa, mas a urgência dele manifesta-se cada vez mais forte, assim como a troca entre os países “desportugueses” também.
Quantas Madrugadas Tem a Noite é uma obra que já data alguns anos e que teve sua primeira publicação em 2004. Mas é um livro necessário de se resgatar agora para descobrir, inclusive, um pouco do Brasil em seu texto. Pode não parecer, mas as semelhanças são muitas. Ler Ondjaki é encontrar um Brasil do outro lado do mundo.
Não à toa, Ondjaki, em certos momentos, traça alguns paralelos com o Brasil e seu povo. Em uma passagem do livro, o narrador, ao contar sobre uma viagem que fez ao Brasil, relata seu encantamento por um poeta de rua que improvisa poesia a partir de uma breve impressão para com um recém-conhecido, como ele mesmo diz, aquele que pega as palavras do chão e cria. Assim como Ondjaki reconhece a beleza daquele poeta de rua brasileiro, não podemos deixar de reconhecer a sua também. Escrevo esse texto no dia mundial da poesia (apesar de ser publicado depois) sobre um romancista e prosador, mas também poeta, dos mais relevantes de nossa geração. Ondjaki é poesia encorajadora e não intelectual, é uma poesia real. Ondjaki é um ser poético.
“nunca escrevi poesia: fui!
“a poesia não se faz, se vive; a poesia não se procura tipo diamante, se encontra tipo arco-íris: ou há ou não há – sorte e azar dos olhos no depois da chuva.”
Ao adentrarmos na narrativa de Quantas Madrugadas Tem a Noite, encontramos uma espécie de desventuras de um morto. Primeiro nos deparamos com a morte como algo normalizado – fator comum entre países subdesenvolvidos. Entre “estorietas” e memórias, Ondjaki narra as aventuras entorno de um morto chamado AdolfoDido, que tem seu corpo sequestrado, e acaba por “viver” uma viagem pelas ruas de Luanda. Além do carácter kafkiano do ponto central da obra, surgem os personagens e situações absurdas que moldam um livro que, em muitos momentos, beira ao surrealismo. Situações nas quais encontramos certas semelhanças ao Brasil e que passa por nós, muitas vezes, desapercebidas.
“Eu acho isso mesmo, coisas que nós observamos aqui todos dias já nem falamos, mas nos olhos dos estrangeiros eu costumo encontrar espanto.”
Em Portugal, quando converso com alguém sobre aspectos sociais brasileiros, muitos se assustam e se surpreendem com a brutalidade enfrentada e a normalidade ao expressar tais fatos. E não que Portugal não tenha seus problemas, mas é muito diferente dos seus filhos colonizados que, aos poucos, estão tomando mais consciência da má influencia que o pai exerceu sobre eles e cada vez mais estão buscando uma reconexão com a mãe. Não podemos esquecer das nossas mães, considerando a África e o Brasil antes dos portugueses como tais. Temos o dever de estudar e de não cair em estereótipos (como o apontado por Ondjaki em um trecho do livro). O intercâmbio entre nós primos, como salienta o autor, é sempre necessário.
“Fomos no Brasil, afamada terra das miúdas; nossos primos, mas não querem dizer isso, porra, afinal a carapinha mete assim vergonha?
… mas lhe pergunta inda onde é Luanda, onde fica Angola? Vai pensar tás a falar de dança”
A pluralidade da arte de Ondjaki talvez seja reflexo justamente da sua condição artística em um país subdesenvolvido. Em seu conteúdo existe um hibridismo enorme e, na sua forma e estética, encontramos um cruzamento entre artes.
Existe em seu texto uma espécie de intersecção da linguagem do cinema proposta pelo narrador, que conduz em sua construção um relato quase imagético do texto. Em muitos momentos seus comentários que interrompem drasticamente o desenvolvimento narrativo (claramente vê-se que o eu-lírico é o próprio autor nesses momentos) lembram as notas que Werner Herzog constantemente faz em seus filmes, extraindo a profundidade e interioridade dos momentos mais potentes. É fato que em relação a Herzog normalmente estamos a nos referir a um documentário, mas o texto de Ondjaki traz também esse carácter documental.
E não só o cinema, mas a música também pontua sua escrita. Há alguns momentos do livro em que Ondjaki nos apresenta versos de estiga (ato de ridicularizar alguém de forma bem humorada) que, apesar de não ser musical, emana uma certa sonoridade em texto. Uma batalha de estiga se assimila um pouco às batalhas de rima que temos no Brasil, onde o vencedor é aquele que mais consegue estimular o público através da ridicularização do seu oponente. Fico a imaginar como seria um enxerto de uma batalha de rima em um romance. Ondjaki faz isso com a estiga e nos apresenta uma manifestação cultural pujante que interfere diretamente na linha narrativa de em um dos seus personagens (BurkinaFaçam).
Ao longo da obra são apresentados seus personagens e seus mundos, bem como Burkina e Jaí, que buscam lutar pela liberdade do corpo de AdolfoDido. Mas também os problemas característicos de uma Angola pós-colonial: toda a obra se passa em uma Luanda inundada pelas chuvas. São personagens que vivem sobre as inundações. Trazer essa imagem e seu simbolismo ao longo do texto reforça a tese da inundação como algo que transborda e, por mais que você tente esconder o que está embaixo dela, ela se revela de uma forma destrutiva. O Brasil também vive inundado há muito tempo, com muita sujeira e problemas que evitamos abordar, e a arte tem o papel de contribuir para acabar com essas inundações. No texto de Ondjaki ele não esconde os problemas, mas sim expõe e reflete de uma maneira engraçada, mas crítica. Com um viés absurdo – tragicómico. Através da língua – do desportuguês – alcança-se isso. “O barro que molda um povo”, como ele costuma dizer. E ao invés de uma unificação da língua e de auxílio de glossários, porque não experienciarmos o desportuguês de Ondjaki e de todos outros artistas que se propõe a isso. Por fim, de nada adianta lermos Ondjaki com a expectativa de ler em português. De nada adianta.
“ou como dizem os brasileiros: nadica.”